quinta-feira, 8 de maio de 2008

VIVER

Ela só precisava de um minuto para respirar. Talvez dois, três, cinco. As noticias chegam rápido demais, pegam de surpresa, assustam, aterrorizam. Estapefeita, ela se sente agora aflita, de uma aflição que a toma o juízo, e tudo que ela tinha construído e tudo que ela queria mais na vida se desmancha como uma gota de tinta azul num copo d´água. E nada faz sentido. E nada a faz sentir. Uma dormência atinge o auge da sua existência, uma anestesia aos prazeres da vida, e a memória do último beijo e do último adeus é o que a lembra de que ainda está viva.

Ainda está viva, apesar da dor, do sofrimento, dos pesares, do juízo de que nada mais faz sentido, da inexistência de motivos, de planos, de direção. Para que ainda está viva, por que o meu Deus me mantém sobre as pernas, quando na verdade tudo faria muito mais sentido se não estivesse.

O amor morreu, e ela sente como se tivesse morrido com ele. Agora restam apenas espelhos, apenas atos impensados, autômatos, ela segue pro trabalho, ela segue se alimentando, ela segue. Insensível à luz do sol que raia para todos, ela não percebeu que o sol raia para ela também.

A dor tremenda toma conta da sua mente, e a sua mente toma conta do seu corpo, e o seu corpo ocupa poucos espaços, se retrai, quer encolher, quer ocupar pouco. Ela não se vê mais. Seu tamanho é pequeno, pequeno demais. Ela não tem mais desejos, ela não tem mais prazer. Pra que querer alguma coisa, se nada dá certo, se nada virá. Pra quê. Nada, nada faz sentido. A vida engloba um grande nada. Mas é isso mesmo que é a vida.

Veja as abelhas, por exemplo. As abelhas seguem o cheiro, as cores, seguem as flores, seguem o açúcar. E são felizes, fazem o que devem, polinizam, se alimentam, se reproduzem. Essa é a nossa natureza. Mas não nos acostumamos a ver as coisas assim.

Não. Queremos mais, queremos ser mais. Queremos ser mais importantes do que os outros, queremos ganhar mais do que os outros, queremos ser mais felizes do que os outros. Queremos que a nossa vida tenha um sentido, queremos dominar o mundo com sentidos. Não queremos estar sozinhos, queremos companhia. Queremos falar sobre o que pensamos do mundo, queremos estar certos, queremos ser amados. Queremos que liguem para nós, queremos ser mais do que realmente somos.

Inventamos seres, damos nomes às coisas, para que possamos ter com que conversar. Inventamos deuses e divindades para que sejamos superiores, para que tenhamos algo o que fazer nos dias, para que veneremos algo que nos ajude a superar a nossa ínfima existência. Inventamos métodos, estudos, calculamos as distâncias e as probabilidades para que soframos menos. Inventamos desenhos, danças e sons para expressar nossas impressões, nossa necessidade de atenção, de carinho, para que nos comuniquemos, e coloquemos para fora o que nos aflige.

Mas nada disso realmente existe. Nada disso é real. Nossas idéias e nossos ideais, a perfeição que imaginamos, nada disso é concreto, nada disso é dizível, pronunciável ou representável. Somos o que somos. Como as abelhas atrás do açúcar é isso que é a vida.

E as sensações, a perda, o sofrimento, a ausência, a falta de rumo e de prumo, de que serve, pra que isso, por que isso? Apenas para lembrar que a vida é isto: é pequena, é inútil, é finita; para lembrar que existem mil outras sensações de prazer, de completude, de grandeza e de satisfação; para lembrar que mesmo que se perca tudo, ainda tem-se a vida e que, apesar de tudo e de todos, ela vale a pena ser vivida. Porque é só vivendo que se erra, é só errando que se aprende, é só sofrendo que se ama, é só amando que se vive. E é só vivendo que se tem história, é essa história que nos pertence e não outra, não a que queríamos, a que sonhamos, calculamos, especulamos, idealizamos. Não. Esta vida daqui é dura, é rígida, é imperfeita. Mas é tudo que temos. Agarremos-nos a ela e façamos com que valha a pena essa história ser escrita. E ser lida. E repetida. E recriada. E inspirada. E analisada. E desconstruída. E refeita, e reformada e costurada. E pronto. Nada mais existe, não tem deus, não tem amor, não tem mais nada. E é linda apesar de tudo, e é bom. É bom estar aqui e presenciá-la, sentir o cheiro do perfume das flores ou do café recém-passado, sentir o frio fresco da brisa que toca seus braços, observar o cuidado das dobras da asa da borboleta e das pinceladas esculturais de Van Gogh, ler um livro grudendo e descobrir, finalmente o destino de um personagem, é tudo e apenas isso o que a vida é e o que podemos ter. Sirva-se.

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